Acordo de não persecução penal recursal: novatio legis in mellius?

Por Alexandre Wunderlich e João Vieira Neto

Entre as diversas inovações da lei “anticrime”, o acordo de não persecução penal (ANPP), previsto no artigo 28-A do CPP, merece especial atenção, fundamentalmente no que limita ao seu impacto nas ações judiciais ainda em tramitação. Como se tem dito, o ANNP comprova a evolução dos espaços de consenso no sistema jurídico penal [1], representando, em determinada dimensão, a disposição do dominis litis para a resolução de casos penais de médio potencial ofensivo, em condutas sem manifestação de violência.

Sem dúvidas, o instituto representa uma sumarização de apenamento, com sensível redução de atos litúrgicos, primando pela economicidade e celeridade da prestação jurisdicional criminal, sempre que estiverem presentes os seguintes vetores: I) a infração comportar pena mínima inferior a quatro anos; e II) na prática da infração não houver violência real ou grave ameaça, insurgindo/existindo a modulação de  condições e cláusulas para: a) reparação do dano, se possível for; b) renúncia voluntária a bens e direitos como instrumentos, produto ou proveito do crime; c) prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um terço a dois terços; d) pagamento de prestação pecuniária; e, eventualmente, o e) cumprimento, por prazo determinado, de outra condição indicada pelo MP, proporcional e compatível com a infração penal.

Primeira reflexão uma nova concepção
Temos consciência do real tamanho do problema da Justiça Penal no Brasil, no sentido da inoperância dos meios de investigação e da falência do modelo punitivo de encarceramento em massa. Nesse contexto, surgem alternativas ao órgão de persecução penal, como a desobrigação da propositura de ação penal pública. A conceituação e a aplicabilidade da regra reportada no artigo 28-A do CPP conflita, de logo, com o disposto no artigo 42 do mesmo diploma, pois o termo desistir da ação penal abarca até a problematização da temática central, frise-se, em razão da hipótese do acordo de não continuidade da ação penal (MP-PE, Recomendação 001/2020, artigo 10 [2]).

Na sociedade complexa existe uma busca por soluções imediatas para os conflitos, capazes de transformar a ação penal, tornando-a um procedimento mais equânime às partes. Lado outro, não pode ser diminuído o rígido sistema jurídico de garantias materiais e instrumentais — publicidade, ampla defesa, contraditório e devido processo legal. É certo que não há como compreender o novo espaço de consenso com a velha mentalidade fruto de atuação no espaço contencioso. Contudo, acreditamos que é possível criarmos espaços de consenso pautados por um “devido negócio legal”, assegurando garantias aos jurisdicionados.

A experiência da Justiça negocial nas infrações de menor potencial ofensivo (primeira dimensão) não pode ser repetida na larga órbita do ANPP, fundamentalmente no que tange aos abusos por parte do MP — propostas de transação penal em casos de arquivamento, só para citar um exemplo. É importante destacar que o ANPP, enquanto outra dimensão negocial na Justiça criminal brasileira [3], ao contrário da primeira dimensão, exige o reconhecimento do ato ilícito e a confissão formal e circunstanciada — manifestação voluntária em reparar o dano e retornar à margem de licitude.

Segunda reflexão o direito ao ANPP, ainda que em grau de recurso
Em nosso juízo, o ANPP é um instituto jurídico bilateral e a concepção da norma prevista no artigo 28-A do CPP possui incontestável natureza material e, lógico, se também contêm essência instrumental, torna-se híbrida diante do cruzamento.

A verdade é que a lei “anticrime” deu um passo demasiadamente largo — quiçá inconsequente —, pois não dimensionou o tamanho do problema que a interpretação da novatio legis in mellius gerará ao Poder Judiciário. A norma de aplicação da medida restritiva antecipatória torna possível a celebração do negócio jurídico em qualquer fase processual, uma vez que não foi estipulado pelo legislador um regramento de transição.

Portanto, se não existe regra de direito transitório, a problemática intertemporal só poderá ser resolvida mediante o recurso às já conhecidas regras de sucessão de leis penais, imperando a retroatividade da lei benéfica. No ponto, há de ser ressaltado o conjunto de normas que possibilita a hipótese de ANPP na via recursal, após sentença. O racional decorre do exame dos artigos 3º do CPP, 3º, §§2º e 3º, e 932, I, ambos, do CPC/15, em virtude do relator em segunda instância “dirigir e ordenar o processo no tribunal, inclusive em relação à produção de prova, bem como, quando for o caso, homologar autocomposição das partes”. Da mesma maneira, em caso de desclassificação jurídica da conduta, afastadas eventuais agravantes e causas de aumento, de forma que a pena cominada não supere o patamar legal, o julgador será obrigado a devolver os autos ao MP para que exercite o seu poder-dever de propositura do ANPP, avaliando a possibilidade de não continuidade da ação penal, por extensão teleológica do artigo 383, §1º, do CPP.

Em se tratando de permissivo legal que, de qualquer modo, favorece a situação jurídica do réu, é garantida a retroatividade (artigos 2º, § único, CP, e 5º, XL, CF), podendo ser argumentada, inclusive, a sua eventual aplicação aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado (artigo 621, III, CPP e artigo 66, I, LEP) [4].

Aliás, similar entendimento jurisprudencial ocorreu na hipótese de incidência do instituto da suspensão condicional do processo (artigo 89, Lei 9.099/95), quando do exame da legislação pelas cortes superiores.[5] Em nosso entendimento, é a mesmíssima interpretação acoimada à hipótese de se assegurar o acordo de não persecução penal em via recursal (ANPPR), justamente a partir de interpretação obrigatória da novatio legis in mellius.

No mesmo sentido da jurisprudência, a doutrina de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes e Luiz Flávio Gomes assegura que “cuidando-se de processos que estavam em curso na data da vigência da lei nova, esta tem eficácia retroativa e os alcança na altura em que se acham. Logo, em muitos e muitos casos haverá proposta de suspensão do processo mesmo depois da instrução ou da sentença de primeiro grau ou mesmo em grau de recurso” [6]. Aqui, seguimos a orientação de que o fato jurídico reside no requisito intrínseco ligado à adequação qualitativa (fim pretendido) e quantitativa (intensidade condizente com a finalidade), sendo que o extrínseco está correlacionado à intervenção mínima do Direito Penal, alternativa negocial menos gravosa, pois “é preciso, para não ser desproporcional, que o meio utilizado seja necessário ao objetivo almejado, verificando-se essa necessidade pela análise das alternativas postas para o alcance do fim” [7].

Reflexões finais orientação e precedentes
Ainda que o legislador não tenha atentado para todas as implicações decorrentes da aplicação do ANPP no âmbito do segundo grau de jurisdição, é o caso de se concluir que o ANPP representa negócio jurídico bilateral aplicável em qualquer fase processual (instrutória ou recursal), sendo a lógica da retroatividade da nova norma mais benéfica um recurso hermenêutico importante para justificar esse entendimento. Todavia, reconhecemos que a questão ainda está em aberto e que o seu enfrentamento demandará debates e um amadurecimento do tema por parte da jurisprudência.

Recentemente, foi suscitada “questão de ordem” em sede de recurso de embargos infringentes em tramitação no TRF-4 sobre esta temática [8]. A 4ª Secção de Julgamento da Corte Regional Federal, por maioria, apontou que “não há solução jurídica pronta a disciplinar a acomodação do direito novo aos casos em andamento” e sublinhou que “não é porque a lei determina um momento adequado à realização de ato (que gera efeitos materiais), que a regra de transição restará inibida se o processo judicial tiver tramitado para além de tal momento. É justamente da transição que se fala, devendo o problema ser resolvido com base em princípios de aplicação da lei no tempo, e não com base nos requisitos internos do novo instituto”.

Na mesma linha, o MPF promoveu orientação com a publicação do Enunciado 98 da 2ª CCR, verbis: “É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do artigo 28-A da Lei 13.964/19, quando se tratar de processos que estavam em curso quando da introdução da Lei 13.964/2019, conforme precedentes. Alterado na 184ª Sessão Virtual de Coordenação, de 9/6/2020”.

Ao que transparece, a jurisprudência está acomodando-se da melhor forma, chancelando a aplicação do novo instrumento de Justiça negocial a partir dos limites do sistema jurídico de garantias. Diante do atual cenário de diluição e simplificação de categorias e estruturas teóricas, com o intuito de facilitar o enfrentamento de problemas penais complexos, temos que pensar pluralmente para que o instituto seja racionalmente configurado e para que receba amparo no sistema de garantias, sempre em favor do jurisdicionado.

 

[1] Por SAMPAIO, Karla; LIMA, Camile Eltz de. “Notas sobre o acordo de não persecução penal”. In: Conjur. Publicado em 16/06/2020: https://www.conjur.com.br/2020-jun-16/sampaio-lima-notas-acordo-nao-persecucao-penal

[2] “Quanto ao acordo da não continuidade da ação penal, instituto criado por analogia e sendo direito líquido e subjetivo do acusado, abrangerá os casos em que houve o recebimento da denúncia”.

[3] REALE JÚNIOR, Miguel; WUNDERLICH, Alexandre. “Justiça negocial e o vazio do Projeto Anticrime’. In: Boletim do IBCCRIM. nº 318, maio de 2019. Os autores sublinham duas experiências de dimensões em sede de soluções penais negociadas no Brasil: (a) a Justiça negocial de primeira dimensão, no caso das infrações de menor potencial ofensivo (Lei 9.099/95) e (b) a Justiça negocial de segunda dimensão, com as infrações de maior complexidade (Lei 12.850/13, agora reformada pela Lei 13.964/19).

[4] O tema do ANPP em sede de execução penal foi bem enfrentado pelos Professores Leonardo Schimitt de Bem e João Paulo Martinelli em recente trabalho monográfico: “O limite temporal da retroatividade do acordo de não persecução penal”. In: SCHIMITT DE BEM, L.; MARTINELLI, J.P. (Orgs.). Acordo de não persecução penal. São Paulo: D´Plácido, 2020, p. 125 et seq.

[5] O STJ se debruçou sobre o momento da propositura da suspensão condicional do processo (artigo 89, Lei 9099/95) salvaguardando direito subjetivo, a fim de sedimentar entendimento que “a Lei 9099/95, naquilo que beneficiar, em sede penal, o réu, deve ser aplicada ainda que o processo já esteja em fase recursal (STJ, REsp 123169, Rel. Minº Felix Fischer, 5ª T., j. 26/06/97). O STF estabeleceu a eficácia ex tunc para a aplicação da norma processual penal, face ao afastamento do impedimento do artigo 90 da Lei dos Juizados, a importar aplicação do acordo até nos processos em status de sentença penal condenatória (STF, ADin 1719, Rel. Minº Joaquim Barbosa, j. 18/6/2007).

[6] GRINOVER, Ada; GOMES FILHO, Antonio; SCARANCE FERNANDES, Antonio; GOMES, Luiz Flavio. Juizados especiais criminais. 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais,1999, p. 304.

[7] SCARANCE FERNANDES, Antonio. Processo penal constitucional. 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 58.

[8] É o precedente: TRF4, 4ª Seção, Embargos infringentes 5001103- 25.2017.4.04.7109/RS, Rel. Des. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, Rev. Des. Cláudia Cristina Cristofani, Questão de ordem suscitada pelo Des. João Pedro Gebran Neto (TRF4, 8ª Turma, Apelo 5009312-62.2020.4.04.0000), vencidos no ponto do ANPP, os Desembargadores Leandro Paulsen e Salise Monteiro Sanchotene. Por maioria, a Corte Regional Federal determinou a cisão do processo com relação a um dos réus, com ordem de retorno dos autos ao primeiro grau de jurisdição para que seja examinada pelo MPF a possibilidade de oferecimento do ANPP e, posteriormente, se oferecido o benefício, para que a defesa se manifeste em oportunidade única e improrrogável nos termos do julgado. Ainda que sem unanimidade, houve “(…) aplicação do direito novo aos casos já denunciados, e a tendência a equiparar tal instituto à suspensão condicional do processo – aplicada temporalmente (..)”. “Há efeitos de direito material que emanam dessa lei e por isso mostra-se forte a tendência a retroação (…)”. E, na linha de precedente do STJ citado expressamente, imperou a “retroação da lei mais benigna, ainda que o processo se encontre em fase recursal (REsp. 2004.00.34885-7, Minº Félix Fischer, STJ – 5ª Turma)”.