Por João Vieira Neto
Diuturnamente vivenciamos operações midiáticas noticiando prisões, ou até conduções coercitivas de alvos-investigados ligados a delitos contra a ordem tributária, em especial, face ao modesto alinhar das razões a se refletir deste texto, como incurso nas sanções da lei 8.137/90, com punições não superiores a 5(cinco) anos, logicamente já previamente condenados no processo penal televisivo e pelo senso sumário social, sem ao menos terem tido chance de se defender, quiçá sentença transitada em julgado.
Pois bem, é nesta asserção relativa ao nascedouro da ação penal e o fim utilitarista do Direito Penal por eventual punição estatal, diante do agravamento por aplicação do art. 12, I, da lei 8.137/90, muitas vezes genericamente e sem vetores a conduzir, – quase instantâneo – em elevação punitiva por “grave dano à coletividade” nos importa refletir.
De logo, para fins da persecução penal, o Poder Judiciário Penal só poderá implementar medidas invasivas e ser acionado diante da devida materialização da conduta, em tese ilícita, com a exigibilidade do crédito tributário, ou seja, esvaziada a tramitação da esfera administrativa, à luz da súmula 24 do STF.
Neste aspecto legal-jurisdicional, o valor histórico do tributo servirá de parâmetro e delimitador à atuação do Ente de Acusação, em tempos de Justiça Penal negocial1, uma, para análise de aplicabilidade do princípio da insignificância, aos olhos do STF2, no importe de até R$ 20.000,00, e segue (agora) o STJ tal critério objetivo, após julgamento dos Recursos Especiais 1.688.878/SP e 1.709.029/MG, em 28/2/18, sob a relatoria do min. SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, na 3ª Seção, em revisão ao tema 1573; dois, buscar promover a ação penal sob a ótica da lesão ao erário público não arrecadado pelo Estado-Administração Pública; três, considera-lo como parâmetro de exasperação da punição, onde necessariamente deverá indicar o porquê do grave dano causado à coletividade já na denúncia, pois, segundo o min. SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, “Não é possível aplicar a causa de aumento da pena prevista no artigo 12, inciso I, da lei 8.137/90, quando na denúncia não foi descrito nenhum grave dano à coletividade decorrente da conduta perpetrada pelo acusado. Isso porque foi violado o princípio da correlação entre acusação e sentença, uma vez que o Tribunal decidiu além daquilo que foi pleiteado pelo órgão acusatório. É imprescindível a descrição do dano na denúncia para incidência da causa de aumento.”4; E, quatro, sobretudo como dita o min. ROGÉRIO SCHIETTI CRUZ, “(…)há uma violação à regra que determina que a sentença deve corresponder ao pedido, o que contraria não apenas o Princípio da Congruência, mas também o do Contraditório e o da Ampla Defesa, visto que a defesa não teve em conta essa causa de aumento de pena para refutar a acusação”5.
Por sua vez, o magistrado ao analisar detidamente à espécie criminal imputada, aqui nas linhas descritas nos artigos 1º e 2º da lei 8.137/90, decerto, dentro de um juízo de reprovabilidade fundamentado (CF/88, art. 93, IX), deverá utilizar exclusivamente o quantum histórico do tributo para fins da fixação da apenação, afastando a hipótese de soma-lo aos juros e correções.
In casu, sem transbordar do proibitivo bis in idem, a autoridade sentenciante na primeira fase do sistema trifásico de NELSON HUNGRIA, atribuindo na circunstância judicial (CP, art. 59) das consequências do ilícito o montante do tributo sonegado, repita-se, sem tautologia, excluindo os acréscimos de juros e correções, por bem, ficará impossibilitado de utilizá-lo novamente no terceiro time (CP, art. 68) da causa de aumento do art. 12, I, da lei 8.137/90, nos moldes do entendimento exposto pelo min. JOEL ILAN PACIORNIK, pois “Quanto ao grave dano à coletividade, importa consignar que este pode ser sopesado ou na primeira ou na terceira fase da dosimetria, ficando apenas vedado o bis in idem”6.
Noutro giro, se houver a opção punitiva de aplicar a causa de aumento genérica face ao “grave dano à coletividade” pela sonegação de impostos, há de se ponderar, qual parâmetro dever-se-á utilizar?
A reboque dos posicionamentos jurisdicionais lançados está a previsão administrativa, através de portaria expedida pela PGFN 320/08, intitulando os grandes devedores diante dos valores iguais ou superior a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais) de tributos não recolhidos, por seu art. 2º, I, ou art. 14, com tratamento prioritário aos ajuizados com valor da causa igual ou superior a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), com o propósito de estabelecer indicativos na concepção dos interesses do Estado-Administração Pública em cobrar e, ao mesmo tempo, determinar um cenário quantitativo vultuoso a importar gravidade decorrente da omissão/supressão de impostos a ensejar prejuízo à coletividade, daí a celeuma7.
De lado a lado, Corte a Corte, magistrado a magistrado, ver-se insofismável insegurança jurídica a debater sobre tema de importantíssima concepção, em virtude de se forcejar, com a aplicação da causa de aumento do art. 12, I, lei 8.137/90, apenação em regime mais grave de cumprimento e, infausto, impossibilitar a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, à luz do art. 44, do CP. Qual a finalidade da pena? A prisão irrestrita servirá para corrigir eventual “criminoso”? Há ressocialização nas unidades de aprisionamento? A vantajosidade e economicidade ao Estado na aplicação das penas restritivas de direitos são levadas – realmente – em consideração?
Em recentíssima decisão, a Quinta Turma do STJ por debruce e análise de caso concreto, no julgamento do HC 412.205/PE, sob a relatoria do min. JOEL ILAN PACIORNIK, reconheceu, obviamente, a previsão legal da possibilidade de aplicação do art. 12, I, da lei 8.137/90, reafirmando posicionamento firmado, mas afastou o acréscimo punitivo por entender não, na hipótese, sê-lo (o imposto originalmente quantificado) caso de “grave dano à coletividade”, vejamos:
“EMENTA HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO. DESCABIMENTO. CRIMES DE SONEGAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA E SOCIAL. PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO. VALORAÇÃO NEGATIVA DA CULPABILIDADE. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. QUANTUM DE AUMENTO (1/2). REDUÇÃO PARA 1/6. POSSIBILIDADE. CAUSA DE AUMENTO DE PENA (ART. 12, I, DA LEI 8.137/90). INAPLICABILIDADE. CONSIDERAÇÃO DO VALOR DO TRIBUTO SONEGADO, SEM ACRÉSCIMOS LEGAIS (JUROS, MULTA E DEMAIS ENCARGOS). GRAVE DANO À COLETIVIDADE NÃO DEMONSTRADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
1. Em consonância com a orientação jurisprudencial da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal – STF, esta Corte não admite habeas corpus substitutivo de recurso próprio, sem prejuízo da concessão da ordem, de ofício, se existir flagrante ilegalidade na liberdade de locomoção do paciente.
2. A valoração negativa da culpabilidade (art. 59 do Código Penal), considerada de grau mediano, justifica o aumento da pena-base.
Porém, a fração de 1/4 mostra-se desproporcional, devendo ser reduzida para 1/6.
3. O não recolhimento de expressiva quantia de tributo atrai a incidência da causa de aumento do art. 12, I, da lei 8.137/90, pois configura grave dano à coletividade. No entanto, não se deve considerar os acréscimos legais (juros, multa etc.), somente o valor do tributo não recolhido.
Na hipótese, o valor do tributo originariamente sonegado – R$129.716,21 – não se mostra suficiente à aplicação da referida causa de aumento de pena, tendo em vista, sobretudo, os valores usualmente considerados por esta Corte em casos análogos. Precedentes.
4. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida, de ofício, para reduzir a pena-base e afastar a causa de aumento prevista no art. 12, I, da Lei n. 8.137/90, fixando a pena definitiva em 3 anos e 6 meses de reclusão, em regime aberto, mais 150 dias-multa, substituída a pena privativa de liberdade por restritivas de direitos.” (STJ – HC 412205/PE, 5ª T., min. JOEL ILAN PACIORNIK, j. 20/2/18, p. DJe 2/3/18)
A despeito disto, para GUILHERME DE SOUZA NUCCI8 há óbice na “…inserção do art. 2º desta lei (8137/90), pois são crimes formais, sem resultar, necessariamente, na supressão ou redução da arrecadação tributária, motivo pelo qual ficará impossível causar ‘grave dano à coletividade”.
Ensina o prof. MIGUEL REALE JÚNIOR9 “… correto é que não se deve impor sanção penal, socialmente estigmatizante, e em especial a pena privativa de liberdade, em todos os casos em que a sociedade pode passar sem ela.”
Repousa no entendimento dos não menos festejados ROBERTO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO JUNIOR e FÁBIO D. DE ALMEIDA DELMANTO10, em questão, razão singular quanto à impossibilidade da aplicação da causa de agravamento listada na norma em vigor, “… posto que não se está observando o princípio da reserva legal previsto no art. 5º, XXXIX, da CR”, inclusive, “não se sabe, ao certo, o que se deve entender por ‘grave dano à coletividade’, fato que coloca em risco a necessária segurança jurídica. Em que pese o entendimento da jurisprudência no sentido de que, em determinadas situações … o agravamento da pena se justifica, mantemos o nosso entendimento de que o inciso I do art. 12 da lei 8.317/90 fere a Constituição da República.”
De toda forma, importante é a meditação dos operadores do Direito, sobretudo na utilização de norma penal “interpretada”, à mercê da edição de atos administrativos do Ente de fiscalização e de cobrança, no agravamento da punição estatal a se estabelecer diferenciação entre “quantias vultuosas” e “grandes deveres”, além disto, mais importante, o que é fundamentadamente “grave dano à coletividade”, em prol da aplicação de vetor objetivo ao agravamento pré-falado, sob pena de estarmos em ambiente sombrio de “insegurança jurídica”, pior, a critério discricionário e absoluto do magistrado sentenciante.
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1 CARVALHO, Salo de.WUNDERLICH, Alexandre. Diálogos sobre a Justiça Dialogal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
2 “EMENTA HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. DESCAMINHO. VALOR INFERIOR AO ESTIPULADO PELO ART. 20 DA LEI 10.522/02. PORTARIAS 75 E 130/12 DO MINISTÉRIO DA FAZENDA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. 1. A pertinência do princípio da insignificância deve ser avaliada considerando-se todos os aspectos relevantes da conduta imputada. 2. Para crimes de descaminho, considera-se, na avaliação da insignificância, o patamar previsto no art. 20 da lei 10.522/02, com a atualização das Portarias 75 e 130/12 do Ministério da Fazenda. Precedentes. 3. Descaminho envolvendo elisão de tributos federais no montante de R$ 19.892,68 (dezenove mil, oitocentos e noventa e dois reais e sessenta e oito centavos) enseja o reconhecimento da atipicidade material do delito pela aplicação do princípio da insignificância. 4. Ordem de habeas corpus concedida para reconhecer a atipicidade da conduta imputada ao paciente, com o restabelecimento do juízo de rejeição da denúncia exarado pelo magistrado de primeiro grau.”(STF – HC 136984/SP, 1ª T., min. ROSA WEBER, j. 18.10.16, p. DJe 15.3.17)
3 “Incide o princípio da insignificância aos crimes tributários federais e de descaminho quando o débito tributário verificado não ultrapassar o limite de R$ 20.000,00, a teor do disposto no artigo 20 da lei 10.522/02, com as atualizações efetivadas pelas Portarias 75 e 130, ambas do Ministério da Fazenda.”
4 STJ – REsp 1498157/ DF, 6ª T., rel. p/ Acórdão min. NEFI CORDEIRO, j. 9/12/14, p. DJe 3/2/15.
5 STJ – HC 310588/PE, 6ª T, min. NEFI CORDEIRO, j. 19/3/15, p. DJe 27/3/15.
6 STJ – AgRg no AREsp 1194509 / MG, 5ª T., min. JOEL ILAN PACIORNIK, j. 08/02/2018, p. DJe 21/02/2018
7 “Não é razoável o entendimento firmado pelo Tribunal de origem, que fixou o limite de tributos sonegados em R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais), previsto no art. 2.º da portaria 320/PGFN, para fins de definição de “quantia vultosa”, dado que a própria Fazenda Nacional (art. 14 da citada portaria) confere acompanhamento especializado e tratamento prioritário aos processos judiciais de contribuintes – também denominados “grandes devedores” – que tenham em discussão valor igual ou superior a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais).” (STJ – AgRg no REsp 1282542 / SC, 5ª T., min. LAURITA VAZ, j. 19/8/14, p. DJe 28/8/14)
8 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, 2006, RT: São Paulo, p. 654.
9 REALE JR, Miguel. Despenalização no Direito Penal Econômico, Doutrinas Essenciais – Direito penal econômico e da empresa, V. I, Teoria geral da tutela penal transindividual, 2011, RT: São Paulo, p.665.
10 DELMANTO, Roberto, DELMANTO JUNIOR, Roberto, DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Leis penais especiais comentadas, 2006, Renovar: Rio de Janeiro, pp. 364/365.
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